Rumo à Mileto: O Surgimento da Filosofia e a Transição do Mito ao Logos
- Porfirio Amarilla Filho
- 27 de dez. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 14 de jan.
Nossa viagem ao mundo da filosofia começa em um dos pontos mais importantes da compreensão da Filosofia, como forma de pensamento humano: o entendimento de como esta forma, entre tantas formas de pensar, se estabelece no desenvolvimento do pensamento humano.
A filosofia, como a conhecemos hoje, nasceu em um momento de transição e ruptura cultural, quando o pensamento humano começou a se afastar das narrativas míticas para adotar uma abordagem racional e crítica.
Por certo, diga-se de passagem, a mitologia não é um privilégio dos povos gregos. Ela é um movimento específico da razão humana, que surge de uma necessidade humana de explicar o que são as coisas. Por isso, a mitologia, não importa o tempo nem o local, se estabelece entre os humanos como um princípio fundamental que busca dar sentido ao mundo. E por causa disso, os mitos, em seus mais diferentes aspectos, surgem entre os mais diferentes núcleos humanos.
A mitologia está presente em diversos povos, sociedades e civilizações, não importando, como dissemos, o tempo e o local em que estes núcleos ou civilizações se desenvolveram. As mitologias permeiam a história da humanidade ao longo do seu desenvolvimento.

Claro que com os gregos não poderia ser diferente. Daqui decorre a aproximação visceral entre a Mitologia e a Filosofia, em que esta última emerge das vísceras, das entranhas, da mitologia transformando aos poucos o modo como o ser humano pensa e compreende as relações da natureza e do ser humano com o mundo.
Tradicionalmente, essa transformação teve como berço a cidade de Mileto (tomemos cuidados com esta proposição), na Jônia, no século VII a.C., onde três pensadores — Tales, Anaximandro e Anaxímenes — inauguraram um novo modo de compreender o mundo, dando origem a um modo de pensar e discutir as causas de tudo que há ao redor do ser humano a partir de um princípio fundamental: o Logos, ou seja, a razão humana (para saber mais clique aqui).
A razão imaginativa e a mitologia
Antes do advento da filosofia, as narrativas mitológicas eram a principal ferramenta para explicar a realidade. Essas histórias, imersas em simbolismos e figuras divinas, buscavam dar sentido à origem do cosmos, aos fenômenos naturais e às complexidades da vida humana.
A mitologia, como argumenta Jean-Pierre Vernant, não era um mero relato fantasioso, mas um sistema que traduzia experiências humanas em termos de aspectos divinos e ordenava o mundo por meio de uma razão imaginativa. Zeus, Poseidon e Hades, por exemplo, representavam forças da natureza e dimensões da existência, enquanto as epopeias de Homero e Hesíodo (narradores de Ilíada e Teogonia, respectivamente) consolidaram uma visão de mundo fundamentada na ordem divina.
Porém, essa razão imaginativa operava em uma esfera de inquestionabilidade. O mito não era submetido à dúvida ou à crítica; ele realmente fora aceito e transmitido entre os gregos durante séculos como verdade absoluta, cujo acesso era limitado aos poetas, sacerdotes e oráculos.
Com o surgimento do Logos (a razão humana vista como capacidade para argumentar e buscar conhecimento), uma nova abordagem foi instaurada: a racionalidade crítica e argumentativa.
O Logos: a ruptura e o nascimento da filosofia
Com o surgimento do Logos (a razão humana vista como capacidade para argumentar e buscar conhecimento), uma nova abordagem foi instaurada: a racionalidade crítica e argumentativa. Diferente do mito, que se baseava em narrações e simbolismos, o Logos buscava explicações lógicas, universais e passíveis de debate. Foi nesse contexto que Mileto se destacou como o palco do que podemos chamar de uma Revolução Intelectual, diferente daquela pré-histórica, denominada Revolução Cognitiva, mencionada em Sapiens - uma breve história da humanidade de Yuval Harari.
Tales, o primeiro filósofo de Mileto, propôs que a água era o arché, ou seja, o princípio fundamental de todas as coisas. Sua afirmação não apenas rejeitava as explicações míticas, mas também introduzia a ideia de que o cosmos podia ser compreendido por meio de um único elemento natural. Para Tales, a realidade era ordenada e inteligível, e não dependia mais de vontades divinas arbitrárias.
Anaximandro, discípulo de Tales, expandiu esse pensamento ao sugerir que o arché não era um elemento específico, mas o ápeiron — o ilimitado ou infinito. Sua concepção abstraía ainda mais o princípio fundamental da existência, indicando que a realidade estava além do sensível e que a racionalidade era a chave para desvendá-la.
Anaxímenes, por sua vez, retornou ao mundo sensível, defendendo que o ar era o arché. Ele trouxe um avanço metodológico ao explicar a transformação dos elementos por meio da condensação e rarefação, sugerindo que os processos naturais obedecem a leis racionais.
Mais tarde, dedicaremos um conjunto de textos destinados a cada um destes personagens tão importantes para a Filosofia.
A convergência entre mito e Logos

Embora o Logos marque uma ruptura com o mito, ele não o elimina completamente. Por um lado, a filosofia nascente de Mileto ainda se apoia em metáforas e conceitos que remetem à visão mitológica do mundo; por outro, lembramos que estamos no século VII a.C. e que a mitologia segue marcante como um fundamento cultural dos povos gregos e europeus até o século III d.C, quando o cristianismo rechaça o politeísmo característico das mitologias já no contexto do Império Romano.
Todavia, a inovação dos filósofos pré-socráticos está na atitude de questionar, sistematizar e buscar uma fundamentação universal para a realidade.
É nesse encontro entre a razão imaginativa do mito e a racionalidade crítica do Logos que a filosofia dá seus primeiros passos. Tales, Anaximandro e Anaxímenes exemplificam a transição de uma visão de mundo regida pelo sagrado para outra guiada pela razão humana, estabelecendo as bases para a tradição filosófica ocidental. Surge então os Filósofos (Philósophos), como serão conhecidos mais adiante quando Pitágoras os define como amigos da sabedoria.
O legado de Mileto
O que Mileto nos oferece não é apenas uma série de respostas, mas também o próprio método filosófico: a capacidade de perguntar, investigar e transformar o mundo pela força da razão. Essa pequena cidade na Jônia tornou-se um marco não por suas conclusões, mas pela inauguração de uma nova maneira de pensar. Mais do que uma local geográfico que identifica quem são os filósofos antigos; ela se torna um convite para revisitar a origem da filosofia e a redescobrir o poder do Logos. A partir dessa fundação, o pensamento humano nunca mais seria o mesmo, entre lendas e histórias, Mileto foi a seara das sementes dos frutos que se tornariam uma busca incessante pelo conhecimento, pela verdade e pelo sentido de mundo, do mundo da filosofia.
É isso aí… até mais!